principalmente etc.

uma conversa em silêncio

paternidade em janelas

quando eu tinha 15 anos, em um dia qualquer que não teve aula, não lembro o que me deu, mas pedi pra ir fazer entrega de caminhão com o meu pai. ele tinha uma 608 vermelha e trabalhava pra uma transportadora. achei que ele fosse dizer pra eu não ir, mas ele deixou. vesti uma roupa mais gasta e sentei na boleia com ele e o ajudante, que me lembro vagamente como um rapaz com cabelos lisos e longos e cheiro forte. pensei que ele fosse estranhar a minha presença ali, mas meu pai logo explicou: "A., esse é o meu menino. veio trabalhar comigo hoje". o rapaz fez alguma piada que de alguma forma deixava claro que eu era bem-vindo.

hoje, eu ainda tento entender a paternidade. do ponto de vista de filho há algumas décadas. do de pai, há alguns anos. cheguei a pouquíssimas conclusões, exceto que a maioria dos esforços para acertar, por si só, já são acertos e que, apesar disso, os erros são todos inevitáveis. é preciso coragem.

especialmente porque tornar-se pai é entrar em uma roda de conversa na qual os participantes permanecem em silêncio e com cara de perdido.

durante o trabalho, meu pai falava pouco — o que fazia com que eu prestasse atenção a todos os seus comentários e ações.

nas entregas, tínhamos que colocar o horário de chegada e partida da descarga na nota. fiquei encarregado de fazer isso algumas vezes antes de ajudar a carregar caixas para depósitos, galpões etc, etc. depois de alguns quilômetros rodados, tomei a liberdade de arredondar o horário da chegada e da saída. um músculo ínfimo e anêmico da minha intuição se entesou — talvez arredondar os horários não tenha sido uma boa ideia. falei pra ele, que ficou irritado porque realmente não era uma ideia boa. algo a ver com um tempo limite para a chegada e a saída da descarga. ele ficou irritado, mas também deixou claro que já era e, como a anotação estava à caneta, não dava pra apagar e o documento não podia ter rasura também. não havia mais o que fazer, o que quer que tivesse de acontecer a partir dali, aconteceria e provavelmente ficaria por isso mesmo, não adiantava se preocupar. por outro lado, nas próximas vezes, eu teria que anotar corretamente. sem arredondar nada.

quando os meus filhos nasceram, meu pai nunca chegou pra mim e disse "olha filho, agora eu vou te explicar o que é e o que faz um pai". e seu pai provavelmente também não fez isso, se você, caro leitor, já tiver filhos. na melhor das hipóteses; meu caso, por exemplo, o pai fica por perto e existe a possibilidade de observar o que ele está fazendo.

pensando agora em retrospecto, algumas das atitudes que ele tinha eram sim paternidade.

uma caixa pequena com ideogramas na nota colada no papelão era a próxima entrega em uma fábrica de produtos de coco que ficava afastada da cidade, à beira da estrada. quando chegou a vez desse pacote, comentávamos a curiosidade compartilhada sobre o seu conteúdo e, chegando ao local do despacho, fomos todos juntos fazer a entrega, porque havia uma remota possibilidade de descobrir o que tinha lá dentro. foi frustrante quando vimos que o que quer que seja que estivera dentro da caixa tinha pocado, deixando apenas um líquido branco e viscoso espalhado na embalagem que o continha. os encarregados por receber a entrega estavam visivelmente frustrados, porém pareciam compreender que não havia acontecido nada de surpreendente ali. em um dado momento, A. pôs o dedo na pasta, levando à boca. "tem gosto de nada", disse. meu pai olhou desconfiado, mas também conformado de não ter entendido o que tinha acontecido.

o castigo do tempo, o mesmo que adiciona ficção à realidade, deixa as observações em retrospecto cheias de nostalgia e trauma. as limitações da memória preenchem as lacunas criadas pelo esquecimento com ainda outras limitações. o exercício é encaixar perfeitamente peças de jogos de quebra-cabeças diferentes e torcer para formar uma imagem mais ou menos inteligível.

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no final do dia, voltando das últimas entregas em uma cidade próxima, coisa de uns 40 minutos de casa, na estrada, no fim de tarde, com o céu púrpura, ele me mostrou e eu, meio cansado, vi, pela primeira vez, como era quando a chuva caía lá na frente da estrada enquanto em nós o pôr do sol batia seco.

eu estava casado, mas dormi muito bem naquele dia.


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