principalmente etc.

a imagem do escritor (não) escrevendo

entre a autocrítica e a hipocrisia

“o escritor pega sua caneca de café fumegante, senta à escrivaninha e olha para a tela em branco do computador. a ideia, ele sabe, está lá em algum lugar, mas como transformá-la em algo?”

esse é justamente o tipo de enredo desencorajado pelo Jornal RelevO caso você pretenda enviá-los alguma coisa.

ter lido o trecho que destaquei, mudou a minha perspectiva sobre escrever ficção. realmente, parando pra pensar, a metalinguagem, linguagem que explica a própria linguagem, é um caminho natural para quem trabalha com (vejam só, vocês) linguagem.

o cacoete de escrever sobre escrever, acredito, acaba sendo uma daquelas refeições repetitivas que não te enchem os olhos, não te fazem salivar, não são lá muito nutritivas, mas estão à mão e vão encher a barriga e no final do dia você está cansado demais pra fazer algo melhor e pobre demais pra pedir um delivery.

ao escrever, inventar algo é muito mais trabalhoso do que falar daquilo que já está ali, rodeando toda a nossa vida sem o menor consentimento (a linguagem).

enfim, é muito cansativo sair da ilha para ver a ilha, e estamos sempre cansados.

em 2022, quando eu lancei a principalmente etc. (ainda no mailchimp), me propus a escrever semanalmente — o que, pra minha grande surpresa, aconteceu na maioria das vezes.

foi um bom experimento, mas não pretendo fazer novamente. na primeira edição de relançamento da principalmente etc. desse ano, me propus a escrever apenas o que quisesse e quando quisesse, contrariando todos os gurus da escrita criativa.

dizem que é importante escrever todos os dias, publicar com periodicidade, mas, sinceramente, eu tendo a achar que isso é muito mais um papo pra alimentar algoritmo. conversa que infelizmente entrou pro imaginário coletivo dos escritores que, infelizmente, veem na internet o principal canal para compartilhar suas irrelevâncias com o maior número possível de pessoas.

é claro que escrever exige aprendizado, técnica, estudo, leitura, repetições, exercícios, estratégia e alguma disciplina, mas um músculo excitado à exaustão também gera uma fadiga fenomenal que, em último caso, evita com que o músculo seja excitado novamente.

no fim das contas, a minha experiência de periodicidade fixa nas publicações me fez escrever textos dos quais gosto muito, mas muita coisa beeeeem “mais-ou-meninho” acabou vendo a luz do dia pra manter o “compromisso semanal”. isso me irrita um pouco, porque esses textos meia-boca poderiam existir mesmo assim, talvez até fosse o destino deles vir a ser, participar do meu “que haja”. mas, uma folha avulsa, uma gaveta de meias ou cuecas, uma nota no celular que vai ser perdida eventualmente lhes seria mais adequado.

dentre os textos de 22, que você pode ler aqui, um que eu gosto muito se chama “a escola da frustração” (ou algo assim, não lembro direito e não vou olhar agora).

nele eu falo sobre como eu tentei, por um tempo, trocar cartas com alguns conhecidos e como era bom o sentimento de nem ao menos saber se as cartas tinham chegado. a sensação, cada vez mais rara, de escrever algo por escrever — sem essa doença de esperar likes, reações, comentários, conversões, assinaturas e todos esses números obscenos e fetichistas que estão transformando todas as pessoas em gente carente, desesperada por atenção ou pior, em projetos de influencer.

das cartas, o que poderia vir era, no máximo, uma resposta — podendo ainda demorar, ser perdida, ser roubada et cetera, et cetera.

a escola do fracasso também foi inspirada pelas vezes em que mandei originais pro próprio RelevO, sabendo que talvez nenhuma mensagem de recusa viesse pelo email (agora eles dizem que mandam respostas de recusa).

além das newsletters e das cartas, existe também o meu livro de contos (aqui). quando as minhas primeiras cópias de “Contos de Amor e Cansaço” chegaram, uma amiga me perguntou como eu me sentia vendo o livro pronto.

respondi que estava meio decepcionado. eu achava que na edição final o livro ficaria com mais páginas.

mas junto desse pequeno descontentamento, havia também a satisfação de ter transformado meia dúzia de contos em um livro.

esse era o meu objetivo no final das contas e ele foi cumprido.

os contos já existiam, estavam escritos há anos. não os fiz pensando em organizá-los com alguma ligação temática entre eles. quando os escrevi, só queria que eles existissem e, é claro, que alguém os lesse.

até então, eu costumava transitar entre “achar estranho que as pessoas não soubessem que eu escrevo e procurar alguma coragem para me exibir”; e “preferir que as pessoas não soubessem que escrevo e não fazer nada pra mudar isso”.

de uns tempos pra cá, não vejo mais sentido nas imagens criadas a partir das coisas.

a imagem, por exemplo, do escritor não faz mais sentido pra mim porque nem sei se essa imagem existe enquanto uma realidade autêntica, em vez de ser apenas um construto resultado um certo imaginário de um determinado tipo de gente que absorve gêneros específicos dentro e fora da internet e, por isso, cria toda uma estética na sua cabeça e nas obras que cria.

e tal da imagem do escritor, uma alma atormentada, fumante, solitária que está sempre de terno e gravata etcétera, etcétera.

nada disso faz sentido.

enfim, o que faz sentido pra mim hoje é o ato de escrever em si e que, ao final, exista algo a ser lido por alguém.